terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

COMO REAPROPRIAR UMA DÍVIDA INFINITA ?



Uma brilhante reflexão que merece uma leitura atenta.




Os judeus deviam tudo a seu Deus. Os cristãos já nasciam imbuídos do débito original. Os protestantes aprofundaram e secularizaram a dívida. Nasceu o espírito do capitalismo quando os estados integraram as dívidas e chamaram a responsabilidade fiadora para si. O que antes eram blocos e pedaços de dívidas, se generalizou como dívida perpétua e irremissível. Não pode mais ser quitada. Não foi feita pra isso. O processo do senhor K jamais chegará a seu termo e o agrimensor nunca conseguirá entrar no Castelo.

Hoje, a dívida é infinita. A criatura vem ao mundo coberta de deveres. Deve-se preparar para o mercado e a ele servir. Deve projetar a carreira e nela ascender. Deve constituir o próprio património. Deve cumprir os deveres de indivíduo proprietário. É responsável por seu sucesso e culpado por seus fracassos, empresário da própria salvação. A dívida infinita interioriza-se como vazio existencial, a ser diuturnamente preenchido, num futuro aberto ao nada. Na jaula com a onça, o ser humano se exaspera, se deprime, busca consolos, autoengana-se, e acaba investindo na própria servidão. Acossado de todos os lados por uma cobrança interminável, vive em estado de permanente culpa. Na obsessão de ser bem sucedido, coloca-se cativo de deveres cada vez mais inalcançáveis. Eis o conceito de vida sob o capital.

Em tempos de crise global, a resistência às finanças avança o estado da dívida ao campo do visível. O volume dos débitos supera exponencialmente os créditos. A prometida sociedade de empreendedores desfalece utópica. Os slogans "todos acionistas!" e "todos proprietários!" revelam a premissa e a conclusão: "todos endividados". Ou pelo menos 99% de todos. Por meio do endividamento direto de famílias e indivíduos, ou de maneira diluída pelas dívidas públicas, o sistema financeiro governa os governos. E os governos discursam que o fracasso é seu, você, que precisa de ser mais austero, mais responsável e mais consciente ao consumir, trabalhar e planejar-se. O vazio existencial levado à grande escala conforma a economia política do capitalismo, que produz, reproduz, organiza e distribui a falta.

Que é a máquina representativa senão a institucionalização dessa falta, a presença da ausência? As instâncias da representação estão ocupadas pelos bancos, públicos ou privados, e pelas instituições e grandes grupos financeiros. Se a dívida é infinita, no fundo todo o dinheiro pertence aos bancos. Eles são os únicos verdadeiramente solváveis. Não admira sejam os únicos com um direito infinito de insolvência. São os primeiros a ser socorridos e salvos, isto é a se socorrerem uns aos outros, a fim de salvaguardar o todo. A salvação do Banco, afinal, não tem preço.

Mas não nos apressemos em confundir o sintoma pela doença. A crise permanente, um outro nome para a nossa economia global, não se origina nas finanças. Quem critica as finanças e poupa a mitológica "economia real" não entendeu a pintura completo. Como se a economia real, ainda que pudesse existir sozinha, não fosse ela mesma causa de problemas sociais, ambientais, trabalhistas, políticos. Essa miopia tanto isenta o bom capitalista produtivo, que seriam melhores que os banqueiros, quando pode flertar com o antissemitismo, ao equiparar a dívida infinita do capitalismo com a dívida infinita do judaísmo.

Parte considerável das esquerdas sucumbe ao argumento do capital produtivo. Crê num capitalismo benevolente que promete levar as benesses da modernidade a todos, mediante o desenvolvimento das forças produtivas e a distribuição equitativa dos bens produzidos. Uma UDN vermelha e progressista, que não aprendeu com as lutas generosas do passado. Ela converge no discurso do desenvolvimento com que de mais conservador existe no Brasil.

O sistema financeiro é órgão, não o metabolismo inteiro. As finanças operam no poder do dinheiro, nessa potência liquefeita capaz de coordenar a exploração da riqueza social e controlar a sociedade. Quem tem o capital financeiro decide como, onde e quando investir. E investirá onde tiver garantias e puder prever o retorno dos investimentos. Investirá onde houver formas de governança capazes de mobilizar o trabalho e parasitar os circuitos produtivos a fim de produzir lucro, que retorna na forma de juros. Investirá onde os governantes e gestores demonstrarem reunir as qualidades de mando, eficiência e esperteza para colocar os outros 99% a trabalhar para eles. Investirá onde houver comando, reforçando-o com o poder desigual que o dinheiro invoca. Os mercados querem garantias para abrir os fluxos de dinheiro-poder.

Que é, em grande escala, a operação de investimento senão uma organização global do controle sobre o trabalho para extração de lucro aos rentistas? Que são as finanças senão o alto comando da produção capitalista pelo globo?

De um lado da equação, o patrimônio do 1% da classe credora, propriedade existente sobre as coisas, que colateraliza e securitiza as operações financeiras. Do outro lado, a produtividade das populações, as suas capacidades de gerar e afectar e comunicar e cooperar e imaginar, que as finanças precisam governar para o lucro. A soma não dá zero. Não existe equilíbrio a restaurar. As trocas desiguais entre uns e outros acabam mistificadas pela dívida infinita, que o sistema financeiro pressupõe e o dinheiro matearializa. Essa mediação coloca em contato a propriedade e o trabalho e realiza a crucial travessia da propriedade sobre os processos sociais: a mercantilização da vida. O sistema financeiro fecha o circuito entre moeda, propriedade e trabalho, num conjunto de relações sociais de produção, isto é, a economia real que só consegue funcionar financeirizada.

Isto não nos deve levar a demonizar o dinheiro e as finanças em si mesmas, mas em seu funcionamento vampiresco. Se a vida é plena e a riqueza superabundante, o estado da dívida forja a escassez e esvazia a vida. Então é preciso opor a cupidez infinita por outro mundo à dívida infinita deste, contrapor a renda da vida à cobrança generalizada sobre ela. Como em Fausto, é corporificar um monstro que está possuído por amor. Em vez de um sistema baseado na valorização do capital, baseá-lo na valorização direta das dimensões produtivas da vida. É desocupar o mundo abstrato que capitaliza o futuro, para redimensioná-lo e reorganizá-lo menos como expectativa de lucro do que desejo de excesso para todos. A reapropriação da riqueza social passa pela retomada do sistema financeiro, bancário e dinheiro mesmo, esse poder demiúrgico dissolvente que representa a dívida infinita.

Todo um horizonte de resistência, que enseja e está ensejando o trabalho da multidão, se descortina no presente ciclo de lutas, que 2011 exprimiu tão bem; da reinvenção do sistema financeiro de baixo a cima, e das cooperativas alternativas de crédito, até à extensão do direito à insolvência a todos os cidadãos (e não só os bancos) quiçá da iniciativa por um jubileu popular e irrestrito, que remita aqui e agora todas as dívidas e pecados, doravante zerados, livres.

( publicado blog brasileiro "O quadrado dos loucos" )

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