sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

URGE RECOLOCAR A IDEOLOGIA NO CENTRO DO DEBATE




Opinião

Não ter ideologias também é uma forma de empobrecimento

 

por Celso Filipe

 
Nos tempos que correm, os líderes políticos cumprem uma regra de ouro para estar no poder, a de abdicar do discurso ideológico que os fez lá chegar. O poder está transformado num exercício de despojamento das convicções, em nome desse bem maior que é governar.

 
Argumentam estes líderes, em Portugal e lá fora, que esta metamorfose é feita em nome do interesse nacional. Veja-se o caso de recente François Hollande. O presidente francês, ao anunciar um programa de rigor que implica cortes no chamado Estado Social, protegeu-se das críticas afirmando-se como um "patriota" e um "realista". E quando o questionaram sobre uma eventual contradição entre as medidas que decidiu aplicar e aquilo que antes defendia, respondeu candidamente: "não professo uma ideologia, embora tenha ideias".

Na verdade, a renegação das ideologias transforma a política numa tecnocracia virada para os resultados. Sem carácter e árida. Hollande não fez mais do que expor esta fragilidade.

A esquerda, desde a queda do muro de Berlim, tem feito um caminho ideologicamente errático. No final da década de 90, do século XX, o líder trabalhista e primeiro-ministro britânico, Tony Blair, lidou com este problema criando o conceito da Terceira Via. Uma ideologia com as características da plasticina, capaz de se moldar a todas as circunstâncias. Esta Terceira Via tinha (e tem) uma amplitude tão grande que cabe tudo lá dentro. Como constata Eunice Goes, no livro "A era Blair em exame" (edições Quimera, 2003), "o New Labour de Blair declara querer combater a exclusão social e a pobreza, mas esse é um objectivo que é partilhado por cristãos-democratas, conservadores e por todos os políticos bem intencionados". Ou seja, trata-se de uma "ideologia híbrida", como a classifica a autora. Que entretanto fez escola e se tornou transversal a todos os partidos dos diferentes países da Europa que ambicionam chegar ao poder. 

O facto do CDS/PP se arrogar ao título de "partido dos contribuintes" é um exemplo suficientemente elucidativo desta desfragmentação. A mesma defesa podia ser reivindicada, sem qualquer dificuldade, pelo PS, PSD, PCP ou Bloco de Esquerda. Por outro lado, é também esta "ideologia híbrida" que cria condições para a disseminação de ideias de extrema-direita, as quais elegem as minorias como alvo dos seus ataques e são capazes de capitalizar o descontentamento que se vai disseminando pela Europa. De igual forma, os líderes políticos trocaram as suas convicções ideológicas pelo populismo, uma prática que precisava de ser financiada e acabou por enfraquecer os Estados e os governos, tornando-os reféns da ditadura dos indicadores económicos.

Urge, pois, recolocar a ideologia no centro do debate. Por duas ordens de razão. Primeiro, porque as políticas, enquanto práticas ideológicas, devem colocar-se (no mínimo) num plano de igualdade face ao poder financeiro, que se consubstancia naquela entidade etérea chamada mercados. Segundo, porque as sociedades sem debate ideológico tornam-se amorfas e acabam por desprezar os valores mais elementares da natureza humana.

A crise económica e financeira que se tem vivido em Portugal resulta, em boa parte, dessa falta de doutrina e da displicência com que se olha para o futuro. As ideologias são plurais. Diversas. Antagónicas até. Mas sem elas, todas as sociedades, sem excepção, são mais pobres. O empobrecimento de Portugal também tem passado por aqui. Pela falta de ideais e de visão do futuro dos líderes que têm exercido o poder


http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/editorial/celso_filipe/detalhe/nao_ter_ideologias_tambem_e_uma_forma_de_empobrecimento.html

Jornal de Negócios 2014-01-23

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