quarta-feira, 10 de julho de 2013

CARTA A UM GOVERNO QUE VAI NASCER DO MEDO


Carta a um governo que vai nascer do medo

 A austeridade excessiva deu cabo de demasiadas coisas em Portugal. Esta semana deu cabo do Governo. Daqui a dar cabo do atual sistema político é um passo. É natural que todos nos preocupemos com os mercados, com os juros da dívida pública ou com o desabar da Bolsa de Valores. Mas é muito importante que não nos esqueçamos do que pode vir a seguir a tudo is...
to. E o que pode vir a seguir não é o segundo resgate, é uma coisa muito mais perigosa: o descrédito absoluto da classe política, dos partidos, do Presidente da República e de tudo o que lhes diz respeito. O espetáculo degradante a que assistimos nesta longa semana era o passo que faltava.

Não estou a exagerar. Defendi vezes sem conta nestas páginas que o Governo tinha condições políticas para cumprir a legislatura. Tinha condições e tinha a obrigação. O meu raciocínio assentava em dois pressupostos simples: em primeiro lugar, deitar o Governo abaixo durante o período de resgate seria uma irresponsabilidade a que nem Portas nem Passos se entregariam; em segundo, não aproveitar a margem política e o provável período de crescimento que a partida da troika nos pode conceder era pouco inteligente para qualquer dos líderes e para os seus partidos. Esqueci-me de uma coisa ainda mais simples: a irracionalidade extrema e a ausência de inteligência surgem quando menos se espera e normalmente a galope.

Não foi por acaso que isto aconteceu a este Governo nesta altura. A indiferença de Pedro Passos Coelho por Paulo Portas será lembrada por muito tempo. O desprezo de Portas por Passos também. Nenhum dos dois aprendeu com os erros que cometeu nem com os problemas que teve de ultrapassar nestes dois anos.

Tanto o primeiro-ministro como o líder do CDS-PP passaram os dias a dizer-nos que as crises podem ser oportunidades. Mas nem um nem outro perceberam a banalidade desta frase. A cada crise somaram desconfiança, a cada problema acrescentaram divergência, a cada desentendimento somaram uma dose de desprezo. É possível que Passos Coelho tenha chegado a acreditar em Paulo Portas. E vice-versa. Mas hoje não acreditam um no outro. E é difícil que alguém acredite nos dois.

Esta semana, o Governo foi ao psiquiatra e deixou a porta aberta. Ofereceu-nos uma imensa semana de “Big Brother VIP”. E agora quer que nos esqueçamos do que vimos, que a banalidade das celebridades televisivas não anda assim tão longe do rateio de lugares políticos. Mas ninguém se vai esquecer do que viu. O esquecimento em política só acontece em transições de regime e com lideranças muito fortes.

O que podemos vir a ter pela frente não é o mesmo Governo remodelado. É um novo governo. Um executivo que não nasceu de eleições mas dos escombros do anterior. Um executivo que não nasceu da vontade coletiva mas do medo. Medo do vazio, dos mercados, do segundo resgate e de eleições.

O medo nunca foi um grande conselheiro mas sempre foi um ótimo combustível. Tudo o que era inaceitável passou a ser possível.-Tudo o que foi discutido e adiado em crises anteriores foi agora “resolvido”. À pressa, à força e à luz do dia, os dois partidos em que os eleitores confiaram em 2011 resolveram acertar as suas contas. É escusado dizer que não foi para isto que os elegeram. Mas é bom lembrar isso para que a solidão do poder, a inevitável soberba e a crescente indiferença não os levem para o abismo connosco atrás.

Não está em causa a legitimidade formal de um governo remodelado. Nem sequer a legitimidade política de quem subscreveu um memorando e fez disso a sua missão. O que está em causa são valores bem mais importantes: seriedade, respeito e confiança. É importante que o governo que agora pode nascer perceba que parte do zero. Aliás, parte de menos que zero. Não somos nós que temos de aprender a confiar no governo, é o governo que tem de aprender a merecer essa confiança.

Felizmente temos um Presidente da República. É bom lembrar o que seria isto tudo sem alguma figura acima dos partidos e com poderes à medida deste caso. Cavaco Silva está a gerir bem esta crise. Tem todas as armas disponíveis e não fecha qualquer cenário. Um governo remodelado, um governo forçado por Belém ou eleições antecipadas são as três soluções em cima da mesa. Nenhuma delas é boa e todas elas apresentam uma imensidão de perigos.

Uma decisão destas precisa de algum tempo. Cavaco faz bem em esperar. Não deve seguir o relógio dos partidos nem o dos jornalistas e muito menos o dos mercados. A ideia que os mercados não aceitam uma espera desta natureza é inaceitável. Além de inaceitável, é estúpida e esquece o que aconteceu recentemente na Grécia e em Itália. A imposição de Bruxelas — ou de Berlim — de lideranças tecnocráticas resultou na implosão dos sistemas partidários e na ascensão de movimentos radicais ou inclassificáveis. Qual é a vantagem de ter um Mario Monti se nas eleições seguinte arriscamos um Beppe Grillo?

Em Espanha, o PP e o PSOE estão de rastos nas sondagens. Em França, Marine Le Pen já surgiu em primeiro lugar em alguns estudos. O UKIP assustou o sistema nas locais britânicas. Da Grécia e de Itália nem vale a pena falar. O rasto de destruição da austeridade nas democracias europeias é enorme e promete continuar. Os mercados não se combatem com soluções medrosas nem com soluções impostas de fora. Os mercados combatem-se com soluções sólidas. E só a democracia promove soluções sólidas e sérias.

Cavaco Silva deve utilizar a solidão do cargo a seu favor. Bruxelas não tem o direito de interferir, Berlim não tem cara para o fazer. Nós cumprimos com tudo o que nos pediram. É verdade que estamos a meio do caminho, mas este caminho só pode ser trilhado por um poder relegitimado. Talvez Passos e Portas cresçam, talvez Cavaco arrisque um governo transitório seu, talvez tenhamos mesmo de ir a votos. É ao Presidente que cabe decidir. Mas não pode nem podemos ter medo. Ninguém evita um segundo resgate quando se põe de joelhos.



Portugal não é um banco cipriota que abrigou russos subitamente endinheirados. Nem um orçamento falsificado. É um país que está sob resgate mas com financiamento assegurado até ao fim do ano. E que tem um ano para testar os mercados e negociar um programa cautelar com o BCE. Cavaco Silva sabe disso melhor do que ninguém. É quem mais fala em Portugal do pós-troika. É ele quem tem de decidir como chegamos lá.

Ricardo Costa

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