sábado, 19 de outubro de 2013

EM DEFESA DO CONSTITUCIONAL

NUNO SARAIVAEm defesa do Constitucional

por NUNO SARAIVA / 19-10.2013
Diário de Notícias

 
 
Desde os idos de 1640, quando tentávamos libertar-nos de Espanha, que a história portuguesa regista com recorrência uns aspirantes a Miguel de Vasconcelos. Esta semana tivemos notícia do mais recente candidato ao posto. Um tal Luiz Pessoa, manga-de-alpaca de Bruxelas que representa em Lisboa a Comissão Europeia, é subscritor de um relatório onde são tecidas considerações sobre a situação política nacional e desferidos ataques ao Tribunal Constitucional.

Perante um Orçamento do Estado que suscita, mais uma vez, fundadas dúvidas de constitucionalidade, o dito senhor avisa que "esta não é a altura certa para o Tribunal Constitucional se envolver em ativismos políticos", sob pena de "provocar um segundo pedido de resgate".

Analisando em retrospetiva as decisões já tomadas pelos juízes, o mandatário de Bruxelas retira uma de duas conclusões possíveis: ou o Tribunal Constitucional está a fazer uma interpretação demasiado restritiva da Constituição, ou pode ser observado como real força de bloqueio, com influência direta na política orçamental do Governo que, na sentença deste amanuense, arrisca mesmo o "colapso" em caso de chumbo de algumas das medidas propostas no Orçamento para 2014.

Este é, por ventura, um dos mais traiçoeiros e despudorados ataques feitos ao Estado de direito, à soberania - mesmo que limitada no plano financeiro - e à democracia e suas instituições de que há memória em tempos recentes. Surge, aliás, na sequência de outra desavergonhada declaração do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, que sem qualquer pejo ameaçou os juízes do Palácio Ratton com um "caldo entornado" caso estes não validem, por exemplo, o esbulho nos salários e pensões de sobrevivência ou a retroatividade na convergência das reformas, abdicando assim da sua função, que é de verificar a conformidade das leis com as normas constitucionais.
Como é óbvio, ninguém está acima da crítica nem da discordância. Mas uma coisa é contestar uma decisão. Outra bem diferente é chantagear e ameaçar um órgão de soberania fundamental à nossa democracia.

A falta de respeito pelo Tribunal Constitucional português tem sido prática corrente nos últimos dois anos, seja externa ou internamente. Em contraste, aliás, com a submissão e reverência obscenas destinadas ao seu congénere alemão. Não consta, por exemplo, qualquer pio de desagrado ou desconforto quando os juízes de Karlsruhe, em 2009, reviram a doutrina alemã sobre a Europa ao estabelecerem o primado do Bundestag, o parlamento de Berlim, sobre a aplicação dos tratados europeus. E nem sequer um esgar de protesto pelo espetro de chumbo pelo tribunal alemão à possibilidade de o Banco Central Europeu - que é suposto ser autónomo e independente - comprar obrigações soberanas dos países em dificuldades, travando assim a escalada dos juros e permitindo-lhes o regresso pleno ao mercado. Aliás, caso esta rejeição se verifique, bem se pode dizer adeus aos planeados programas cautelares que se seguem aos ajustamentos em curso, consagrando-se de forma institucional, numa deriva antidemocrática intolerável, o Tribunal Constitucional alemão como o verdadeiro tribunal de justiça das comunidades.

Perante a traição dos mais elementares valores democráticos, há duas atitudes possíveis: a capitulação, aqui sinónimo de cumplicidade, ou a indignação.

A inaceitável e chantagista intromissão da Comissão Europeia, humilhante e quase colonizadora, nos assuntos internos de Portugal deveria ter merecido repúdio por parte das mais altas esferas da Nação. Se não estivesse capturado e apavorado, o Presidente da República, que deveria ser o garante da dignidade das instituições democráticas, tinha a obrigação de chamar a Belém - ou mesmo ao Panamá, onde está - o "embaixador" da Comissão exigindo-lhe explicações, um pedido de desculpas ou até dar-lhe ordem de expulsão. É essa atitude de "sobressalto patriótico" que distingue os estadistas daqueles que, circunstancialmente, ocupam a chefia do Estado. É, naturalmente, o que separa o estadista Jorge Sampaio de Cavaco Silva, simplesmente o Presidente da República.

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