quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A MÁ MEMÓRIA DE SOARES


Helena Cristina Coelho

A má memória de Soares

28/11/13 00:07 | Helena Cristina Coelho/Económico 

Aquilo que Mário Soares usou como sua defesa enquanto governante, é exactamente aquilo que hoje ataca sem pudor. Não pode ser apenas um problema de memória e a idade não pode ser desculpa para algo que não é só irresponsável: é inflamável.

"O principal para que o Governo tenha êxito é saber persistir. Ter a coragem de não mudar de rumo, independentemente dos acidentes de percurso. Recomeçar, pacientemente, quantas vezes forem necessárias. Tomar decisões. Não se deixar perturbar por agressões verbais, por incompreensões ou por injustiças. Aguentar de pé. Para os homens de convicção e de recta consciência, o que conta é sempre - e só - o futuro". O texto foi-me recordado por uma amiga de boa memória, que se lembra de quem o escreveu há 29 anos.

E foi igualmente repescado por outras figuras, como José Manuel Fernandes, que o replicaram para recordar as palavras e, sobretudo, o seu autor: Mário Soares, em Maio de 1984, quando era primeiro-ministro. O país não estava como agora, estava bem pior.

Havia empresas a fechar portas e os salários em atraso tornaram-se uma chaga social, havia bolsas de fome e protestos irados nas ruas, os preços dispararam, a moeda desvalorizou, o crédito acabou. E o que fez o governo de bloco central? Acabou a estender a mão para assinar um memorando de entendimento e receber dinheiro do FMI.

Foi então o tempo de ouvir pequenas pérolas de austeridade como a de que "Portugal habituara-se a viver, demasiado tempo, acima dos seus meios e recursos" ou que "a única coisa a fazer é apertar o cinto" ou ainda que "não se fazem omoletas sem ovos, evidentemente teremos de partir alguns". O autor? Acertou: Mário Soares.

Não há notícia de que alguém na altura tenha partido as pernas ao primeiro-ministro como represália por estas declarações ou pela dureza das medidas - nem mesmo quando teve de enfrentar manifestantes violentos na Marinha Grande, na campanha de 1986. Aliás, foi premiado por essa valentia e acabou por ganhar as eleições.

A política não tem a virtude (nem sequer a presunção) de ser coerente. E, se faltarem provas, Mário Soares está a encarregar-se disso. Aquilo que usou como sua defesa enquanto governante, é exactamente aquilo que hoje ataca sem pudor. Não pode ser apenas um problema de memória e a idade não pode ser desculpa para algo que não é só irresponsável: é inflamável. Com o país ainda de garrote apertado, polícias a escalaram o Parlamento para darem sinais do que são capazes, sindicalistas a invadirem ministérios para expressar indignação, uma simples palavra pode ser incendiária e deitar tudo a perder.

Independentemente de se gostar ou não da figura ou do seu passado, Mário Soares teve um papel relevante na história do país. Só por isso, e porque pelos vistos continua a reclamar a paternidade da democracia (que ninguém quer aniquilar) e de uma ideologia de esquerda (com óbvias crises de identidade), devia ser o primeiro a preservá-la. Mas não é isso que está a acontecer: ao atacar o presente (leia-se, quem hoje governa o país) de uma forma tão agressiva e estéril, Soares está a destruir um passado que passou por si e a hipotecar um futuro que devia ajudar a construir. E um país sem memória não pode ter grande futuro. Soares devia ser o primeiro a lembrar-se disso.

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