quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O TABÚ DE CUNHAL - PARTE I

 
Quando Álvaro Cunhal conheceu Isaura Moreira e a irmã, Dorília, ignorava a guinada irreversível que este encontro iria ter nas suas vidas. Não aparentava a idade que tinha. Estivera preso mais de dez anos, mas a tortura e a doença apenas lhe haviam enobrecido o rosto bem desenhado e o olhar profundo. O pai da rapariga, António João, 45 anos de labuta, quase 20 como funcionário do PCP, fora escolhido pelo aparelho para esconder numa casa clandestina a personagem chave para o êxito da sua fuga (e de mais nove destacadas figuras do partido).Essa personagem chave era Jorge Alves, o guarda da GNR subornado pelo PCP que estava de sentinela a 3 de Janeiro de 1960 – teve por missão levar Cunhal e outro dirigente comunista desde a cela até à muralha exterior da fortaleza, escondidos debaixo do seu capote. Desceriam depois a muralha com a ajuda de uma corda feita de lençóis. O guarda, que tinha sido aliciado para ajudar a fuga dos dois homens, entrou em pânico ao ver o resto do grupo – composto por oito destacados dirigentes do partido – e quis entregar-se. Mas foi enfiado à força num dos dois carros que esperavam os evadidos.
António João e a família, que desde 1957 viviam na clandestinidade e tinham como missão arranjar casas ilegais para a direcção do partido, passariam depois um mau pedaço com o GNR. O álcool era o único tranquilizante de Jorge Alves, e, na casa da aldeia da Runa, concelho de Torres Vedras, a pinga nunca podia acabar.
Cunhal, mesmo com a PIDE no encalço, um mês e tal depois da fuga comparece numa reunião nessa casa. Honrando o seu compromisso, o partido preparava a fuga do guarda para Espanha, de onde seguiria para a Roménia. Com a precaução de quem vivera 13 anos na clandestinidade, Cunhal contorna o campo das armadilhas que o podiam levar de novo à prisão ou à morte anónima. Anda disfarçado, usa óculos e pintara o cabelo e as espessas sobrancelhas de um loiro muito claro.
O encontro com Isaura
Nos seus 47 anos, mantinha a mesma pujança que a ginástica e o atletismo, que praticara em jovem estudante, lhe haviam emprestado. António João, que três anos depois seria preso pela PIDE, descrevê-lo-á: “Era pessoa alta, forte, um pouco claro, de uns 38 anos”.
Terá sido nessa reunião que Cunhal cobiçou Isaura, 18 anos de uma vida ainda sem grandes segredos. Era loira, alta, de uma beleza serena. E ele, com a explosão selvagem de quem sai da jaula, cerca a jovem.
E foi por decisão sua, ao contrário do que prega a história oficial, que em Abril, três meses após a fuga, o pai da rapariga recebe nova incumbência do aparelho. Tinha de se mudar com a família para a Casa do Penedo, u nos arredores de Sintra, para receber Cunhal. Ainda nesse mês Isaura engravida. Dirá, porém, que a sua relação com o líder comunista não foi fogo à primeira vista, foi “sentindo” o amor.
Talvez a rapariga correspondesse ao ideal revolucionário de Cunhal. Não tivera uma vida suave. O pai, natural de Vila Nova de Milfontes, distrito de Beja, filho de jornaleiros, crescera como tantos camponeses a trabalhar de sol a sol e com pouco para forrar o estômago. Tentara a sorte nas minas de Aljustrel, onde os mineiros já se arreganhavam contra o regime. Ainda moço, farto de chegar ao fim do dia com uma sardinha solitária na mesa para ser partilhada por pais e irmãos, procurara melhor sorte no distrito de Setúbal.
Em Ermidas do Sado, conheceu Corália Moreira, de uma linha de gente da mesma condição. Em 1937, ano em que Cunhal foi preso pela primeira vez, os pais de Isaura casaram. Os filhos surgiram de enfiada. Quatro anos depois, António João era recrutado para o partido por um comerciante local.
O fracasso da Guerra Civil de Espanha e a aliança entre Estaline e Hitler, no início da II Guerra Mundial, provocavam mossas profundas no comunismo nacional, que parecia uma manta de retalhos. Inicia-se então uma profunda reorganização – que Cunhal (que ascendera no aparelho do partido e já fora de novo preso) acabaria por aproveitar após algumas hesitações.
Os pais de Isaura
Na Margem Sul, onde o PCP melhor tinha resistido às ondas da repressão policial, António João optara por uma vida de risco. Usava agora o pseudónimo de ‘Octávio’ e apetrechara-se com a doutrina do país do ‘socialismo real’, lendo o Avante!. Mais tarde, quando a PIDE lhe deitou garras, confessaria: “Fui aliciado há uns vinte anos em Ermidas do Sado por um tal Bernardino Alberto Soares, que já esteve preso nesta polícia, do qual recebia o panfleto Avante!, editado pelo partido, pelo qual pagava uma quotização de que já não me recordo”.
A II Guerra estava nos últimos capítulos, mas o racionamento trazia o povo ainda mais à míngua. O partido incentivava à revolta. As reuniões faziam-se no campo pela noite fora. António João, que em Março de 1945 fora pai de outra rapariga, que baptizaram de Dorília, saía pela surra da noite para encontros clandestinos nos pinhais.
Em Abril, Ermidas está nas greves e manifestações contra a carestia de vida, que juntam operários e camponeses. O regime cobra a audácia com prisões. António João, que já andava na mira da PIDE, é detido para averiguações mas não vacila. Sem qualquer prova, é colocado pouco depois em liberdade, mas passa a andar com a polícia na ilharga: “Passados três anos efectuaram-se prisões em Ermidas, entre elas o meu cunhado Armando, casado com uma das irmãs da minha mulher, o que me levou a fugir com receio de ser preso”.
Atravessa então o Tejo e abriga-se na zona de Cascais, onde tem família. Na Parede, constrói uma barraca e nas obras da cadeia de Tires encontra emprego como pedreiro e chama a família.
Retomar o contacto com o partido naqueles tempos não era fácil – e, para escapar ao abismo da pobreza, roda de emprego em emprego. Achando que só no processo educativo um homem se pode robustecer contra a obscuridade da ditadura, incentiva o filho varão a estudar, o que só era possível por não estar na clandestinidade. Adelino frequenta já em 1957 o 2.º ano da Escola Industrial Marquês de Pombal.
Mas a irmã Isaura tem outro destino: “Com uns saltinhos pelo meio, consegui fazer a 4.ª classe na escola oficial até aos dez anos. Depois foi em casa que estudei, com excelentes professores. Um deles foi [o artista plástico e militante comunista] José Dias Coelho, que nos dava aulas de Português e Francês... Havia outro que ensinava Matemática mas a falta de documentos proibia-nos de continuar a estudar no ensino oficial”. A mentalidade da família era comum à da maioria dos portugueses: em casa, as raparigas aprendiam costura.
Encontro com Blanqui Teixeira
É apenas nesse ano, em que trabalha como pedreiro em Belas, que António João reata ligações com a organização e passa a ser controlado por Fernando Blanqui Teixeira – um intelectual de Coimbra que, aos 22 anos, abandonara o Instituto Superior Técnico, onde desenvolvia uma intensa actividade associativa, para se tornar revolucionário a tempo inteiro.
Aos 37 anos, Blanqui Teixeira já pertencia ao Comité Central do PCP e à Comissão Executiva, e dá a António João a tarefa de ser o ponto de apoio da direcção do partido.
António não suspeitava a reviravolta que esta opção iria ter na vida de toda a família. O filho Adelino acabara de atingir a maioridade, Isaura caminhava para os 16 anos e Dorília completara os 14. A vida era de errância e permanente teatralização. Mudam de identidade de um dia para o outro. E a personagem que cada um deles representa nos contactos com os vizinhos nunca pode esquecer o texto, sob o risco de ser denunciada.
O chefe da família passa a usar o pseudónimo de ‘Leonel’ e, com documentos falsos e fundos do partido, aluga casa no concelho de Odivelas. Mais tarde, ao ser espremido pela PIDE, já não era o mesmo homem e denunciou Blanqui Teixeira, que seria preso com ele: “Foi o funcionário que foi preso comigo que arrastou o meu filho para a clandestinidade e impôs que me mudasse para Caneças com a família”.
Na clandestinidade, o destino tornava-se uma incerteza permanente, mas o casal fizera um pacto que parecia inabalável para derrubar o fascismo. Também Isaura, a filha do meio, se tornara funcionária do partido.
A fuga de casa
Quando, em Abril de 1960, Cunhal chega à casa do Penedo, para onde a família de António João se mudara para o receber, já está apaixonado.
A casa era ampla. Na zona dos quartos havia um terraço de onde se avistava o mar da Praia das Maçãs. Enquanto o dono da casa sai de manhã e volta à tarde para aparentar cumprir o horário de qualquer trabalhador, a mulher, Corália, a quem cabe a defesa do ponto de apoio, trata da casa. Uma noite julgam ouvir passos no telhado – e, apesar de não avistarem ninguém, no dia seguinte desmancham tudo e mudam-se para outra casa na zona de Mafra.
Mas as surpresas sucedem-se. Um belo dia, Corália descobre junto do portão da casa uma ‘mulher’ com pêlos nas pernas. A sinuosa antevisão da prisão e da tortura, que nunca os abandonava, leva-a a pensar tratar-se do agente José Gonçalves, que se prepararia para os encurralar.
Enquanto o casal desfaz a casa e queima a documentação comprometedora, Cunhal enfia no carro Isaura e Dorília e deixa-as na praia das Maçãs, onde Octávio Pato, destacado dirigente do PCP, as vai resgatar. Isaura, já com a gravidez adiantada, nunca mais voltaria a ver os pais. Segue para junto de Álvaro, que a espera na casa da família do futuro actor José Morais e Castro, na Penha de França, em Lisboa, onde ele estivera após a fuga de Peniche e mudara de visual.
O dia de Natal desse ano traria a solitária descendente de Cunhal, Ana Maria Moreira Cunhal, que nasceu numa clínica particular de um oposicionista. Álvaro u era o homem mais procurado do país – e, com Isaura e um bebé atrás, a sua vida complicava-se.
Outro namoro
Não era a primeira vez, porém, que arriscava tudo por uma mulher. Já em 1944, espicaçado pela paixão, mandara passear as regras conspirativas. Na zona de Bucelas, fora Áurea Vieira, jovem liceal oriunda de uma família monárquica, que habitava próximo da casa ilegal onde ele se refugiara, quem lhe amaciou os dias difíceis.
Cunhal, que estava então com 31 anos, era visto com a adolescente em passeios bucólicos pela serra do Picoto. Na vida clandestina, as moradas são provisórias e ele sabia que, mais dia menos dia, teria de se mudar. Era um homem de extremos, e para não perder o contacto com Áurea deu-lhe a incumbência de passar um recado ao pai. Avelino Cunhal recebeu-a e guardou a carta do filho, que seria apanhada numa busca ao seu escritório. Posteriormente preso, Avelino foi instado a esclarecer a identidade de Áurea e a sua colaboração nas actividades do filho.
Perguntam-lhe como recebeu a missiva, e ele defendeu-a: “Diz que lhe foi entregue por uma menina que não conhecia nem conhece e cujo nome não perguntou. Que o endereço seria apenas para o seu filho escrever à portadora da carta… Que não lhe parece que a rapariga fosse um elo de ligação com o filho para a sua actividade subversiva, pois o que na verdade lhe parecia existir era uma simples relação de natureza afectiva”. Em dois tempos, a PIDE chegou a Áurea, que, verde naquelas andanças e sem conhecer a verdadeira identidade de Cunhal, deu a conhecer à polícia o seu paradeiro, de onde ele entretanto pulara.
O tabu de Cunhal - parte II
O tabu de Cunhal - parte III
felicia.cabrita@sol.pt

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